sexta-feira, agosto 07, 2020

Contabilidade possível

 Finalmente, as férias.


Independentemente da sua necessidade, do prazer que provocam, da ânsia que geram, as férias são, acima de tudo, uma grande mentira. De resto, das poucas mentiras que o ser humano admite e até roga por viver.

Não sei como são as férias de toda a gente, mas enquadrando-me eu numa faixa económico-social parecida à da classe média e admitindo que é geral, tenho longas horas de exposição reptilar ao sol, refeições com nomes compostos, esquecimento parcial (já lá vamos) do conceito de ordem pública e bons costumes ou mero direito subjectivo, dolce fare niente e, desde há uns anos a esta parte, vigiar com os olhos que tenho e que não tenho uma criança que, hellas, arranjará sempre situações capazes de vingar em romances.

E, então, onde está a mentira?

Meus caros, a vida não é isto. E, meus caros, nem as férias (as minhas, pelo menos) são isto.

Quanto à vida, não conheço os gebos filhos papá todos do mundo, mas até esses, às vezes, hão de contribuir para o PIB. A vida é, acima de tudo, sofrimento. Onde está sol, boa comida, paz e sossego não costuma haver sofrimento. A vida é sacrifício. Nunca vi disso numa praia, ainda que tenha ouvido a respeito de coisas com galinhas à noite e tal. A vida é um processo nada dialéctico, sem sentido ou propósito. Ora, onde há um objectivo de ganhar cor, descansar e passar tempo com a cria, não se pode falar na vida que conhecemos.

No que às férias concerne, uma vez mais digo que não conheço as férias de toda a gente, mas as minhas são passadas, mais vezes do que queria admitir, ao telefone. Curiosamente, todas as chamadas reúnem duas características: 1) começam sempre com "Então, Doutor, já está de férias?" e 2) servem para RIGOROSAMENTE NADA. Vou ser mais explícito: a minha maneira de trabalhar é a seguinte: tenho uma novidade e vou logo contá-la ao cliente. O que quer isto dizer? Que se não ligo...não há novidades. Ora, qual é a segunda pergunta que surge? "Sabe alguma coisa do meu processo?". Não, não sei.

Num verão, uma senhora ligou-me, estando eu em plena praia, a dizer que ia ser despejada. Disse que a Igreja dela ia pagar os meus honorários. Ligou-me umas seis vezes. Enviou mails. Nunca a vi.

Outra vez, ligou-me um fulano, cujo caso estava há muuuuuuiiiiiittoooo resolvido, mas queria saber coisas.... Nunca mais ligou. Deve estar para breve.

E é isto, sempre num mundo, sem sair de outro. A tentar descansar, sem o fazer completamente. A escrever textos com tópicos batidos, mas sem categoria para mais.