sexta-feira, janeiro 31, 2020

Das coisas que nunca me tinha acontecido

Atrás do meu escritório, um pouco antes de chegar ao serviço de CTT, um velhinho urinava no meio da rua.
Vi-o de longe.
Mudei de direcção.
Inevitavelmente, e porque precisava de ir ao dito serviço, tive de me aproximar, ainda se sacudia a mais valia.

Disse-me bom dia, enquanto apanhava os alhos e um saco que tinha colocado no chão para concretizar o serviço.

A primeira sensação foi de algum repúdio. A segunda foi de aceitação. Um dia, poderei ser eu. Quem sabe?

Nunca me tinha acontecido.

quarta-feira, janeiro 29, 2020

Apontamentos profissionais

Quis a vida que a minha prática profissional se cruzasse com algo que podia ser uma história de Jornal da Noite da SIC: uma regulação de responsabilidades parentais de uma menor em que o Pai está em Paredes de Coura e a Mãe em Almada. Afinal, com quem viverá a menina?
Represento a Mãe.
Este processo "caiu-me", no âmbito do acesso ao direito (vulgo oficiosas), ao fim de duas escusas prévias, ambas por motivos próprios e em nada relacionados com a personalidade da Mãe.
Depois de duas sessões de julgamento, entendeu a Meritíssima  ouvir a menor: uma criança de sete anos.
Passada uma hora de audição, numa sala em que está a menor, Juiz e Procurador, são convidados a entrar os mandatários e as partes, sendo protegida a menina, que é encaminhada para a assistente social.
"A menina tomou uma decisão" - Disse a Juíza - "Foi muito clara. Ela quer ficar com o Pai".
O que se segue são jogos de lágrimas, revoltas. É que, se tal não bastasse, foi dito: "Mas podemos experimentar: concedemos a guarda provisória ao Pai até julho e se correr bem, fica, se correr mal altera-se".
Mais se passou, mas este resumo, que usarei para memória futura, bem basta.

Convidado, compulsivamente, pela Meritíssima a acompanhar a Mãe, de forma a acalmá-la, e de lhe ter oferecido um café, voltámos ao contacto com a criança.

"Mãe, estiveste a chorar."

quarta-feira, janeiro 15, 2020

DC 2020

Lembrei-me.

Passaram vários anos sem que consultasse um dermatologista. Padeço de psoríase e vitíligo. Há uns anos, em Porto Covo, consegui "limpar" as manchas que o meu corpo alberga. Pensei que o sol trataria do assunto todos os anos. Nada mais errado. Foram aparecendo, colonizando.
Graças à insistência da minha esposa, lá fui ao médico.

Ao acordar, e antes da consulta, fui informado (primeiro por ela e depois pela visualização no telemóvel)  de que me acusam de ter uma casa de banho potente ao ponto de causar infiltrações não em um, mas dois andares abaixo do meu.
Dizia o e-mail da notificação, que tinham ido bater à minha porta às 23 horas para me dar conta da hipótese ser eu o causador do dilúvio. Nem ouvi.

A existência que me carrega (e eu sou carregado por ela, sem dúvida) nunca deixa de me brindar com manchas. Ora na pele, ora em paredes alheias.

Não sei como vou reagir às pomadas receitadas, nem sei se tenho seguro que possibilite que não me apresente à insolvência com as reparações que poderei ter que fazer. Viver um dia de cada vez é isto. É mau. É penoso. Porque, aparentemente, o conceito de descanso é meramente teórico. Uma ideia.

Não existe a paz.

E o ano começa assim. Responsabilizando-me pelo meu cuidado cutâneo. Sendo-me imputado o escorrimento de águas.

Não haja dúvidas de que terei saudades de 2019.