O suor de um soldador é imperscrutável.
Aquele, em particular, de tudo fez para que nada faltasse em casa.
Cedo se juntou com aquela que seria sua mulher. Casaram num dia bonito, naqueles em que a chuva está de binóculos, lá longe.
Ela queria estudar, mas foi sempre vontade dele trabalhar. Assim foi. Na Bélgica, Holanda ou na Lisnave fazia horas extraordinárias para que aquela côdea viesse calhar-lhe ao bolso e fosse possível remeter para o lar mais uns euros.
Tiveram filhos. Tiveram casa.
Ela deixou de estudar. A rotina que a ocupava deu lugar a longas temporadas de clausura. Ele saía e entrava. Ela ficava. Ele ganhava e partilhava, ela só contemplava.
Não havendo quem mais culpar, tornou-o bode da sua ira. Aquele que amou era, agora, um iogurte estragado, um prado ardido, um chão que já tinha dado uvas. Já chegava daquilo.
Iniciou-se o processo de repulsa, esse estranho fenómeno, composto por tantas camadas quanto a mais ácida das cebolas. Primeiro, deixou de lhe dirigir mais que uns monossílabos. Depois, fechou-se inteiramente, já não lhe pertencendo.
Ele sabia pouco. Sabia de menos. Anos de reparação de navios haviam expurgado o senso do correcto. Só havia o dever, estando esquecido o humano que em todos devia habitar.
Numa noite, forçou. Não, todavia, como qualquer escroque. Quis o que ela não lhe queria dar.
Errou profundamente. Errou para lá do perdoável.
Foi detido. Foi preso.
Passaram-se meses. Dos filhos só chamadas. Um com 10 anos e outra com meses passaram a ver o pai como um fantasma. Sem saberem o que tinha sucedido, só restava esperar pelo dia em que o voltariam a ver.
Ela não foi lenta a reagir.
Rapidamente pediu o divórcio e a guarda total dos filhos.
Ele continuou a pagar o erro profundo, o tal para lá de perdoável.
Já depois de belos meses dedicados ao presídio, foi notificado. Deveria comparecer no Tribunal para uma conferência de pais.
Ao dia e hora, lá estava. Estaria sempre. Muda o facto de a escolta ser substancialmente superior.
Cedeu em tudo. Guarda, residência, alimentos...que havia de fazer?
Lavrada a acta, sem pedir licença, dirigiu-se ao juiz:
- Posso ver o meu filho hoje?
Como é certinho na escória que habita e parasita o sistema prisional português, a resposta veio, à velocidade da luz, de um guarda que ali estava:
- Não temos ordens para isso!
Havia, contudo, um Juiz e Procurador naquela sala. Como colocasse aquele traste fardado no lugar, ordenou, simplesmente, que a funcionária trouxesse o menino.
- Estás tão grande, disse ele
Seguiu-se o abraço mais breve e emocionado a que tive oportunidade de assistir.
Quase 5 meses separaram o pai do seu filho. Não porque era mau pai, muito menos porque merecesse esse castigo suplementar.
Portando-se como se fosse dona dos filhos, como o é de facto da sua vida, ela não quis aquela reunião. E disse-o.
Ele voltou para os calabouços. Despedi-me dele como sempre: tenha força.
Naquele dia, o Juiz ouviu aquele rapaz que se agarrou ao pai com lágrimas nos olhos, toldado pela saudade. Das suas declarações resultou a vontade inequívoca de visitar o pai na prisão. A mais nova? Nem os magistrados nem ela foram de parecer que o encontro se concretizasse.
Porque, a bem da verdade, os filhos são propriedade do sistema de justiça e das mães.
Ou assim se pensa.