Desce, pela estrada, certa rapariga.
É "típica": cabelos escuros, encaracolados. Veste um top, com as devidas alças. Mala pendurada no ombro esquerdo, telemóvel na mão direita.
Tão calma que está.
Olhar para ela é não saber coisa nenhuma. Será estudante? Será uma contratada?
No fundo, ela é uma pessoa como as outras.
Dela não sabemos coisa nenhuma.
Aqui e ali, nos caminhos mentais, é uma figura daquelas que usamos para preencher todo um espaço que imaginamos, toda uma sociedade que rodeie os devaneios próprios. Para encher, mesmo, o dito espaço, procedemos a uma multiplicação daquele ser por vários et voilá.
Nada é melhor que almejar a esse estatuto.
Para além da forma, importa o conteúdo. Sobretudo ele.
Poderia tecer inúmeras considerações sobre aquela calma a descer a rua, sobre aquela rapariga que escrevia qualquer coisa no telemóvel.
Apostar, no que quer que fosse, era ceder ao preconceito e injustiça.
É bom não saber tudo sobre alguém.
Melhor que isso, é não saber, rigorosamente, nada. Não há margem para qualquer tipo de engano, porque não houve chance para se proceder em erro.
Não é que concorde com o que escrevi.
Mas há algo de fascinante no facto de ninguém saber quem somos.
É a liberdade que daí deriva.
Pensar algo de alguém é condicionar qualquer acção que se possa ter.
Saber que se é visto, que se é objecto de tempo dispendido a ser estudado é limitador da liberdade.
A miúda que descia a rua, perante mim, é totalmente livre.