Na minha infância, assisti a um episódio do qual jamais me esquecerei.
Numa tarde de verão, o calor era o de sempre. Certo amigo meu sucumbia ao efeito do sol na mioleira humana: estava apaixonado. Bem o ouvia eu: de tipo duro e convencido, havia caído na rota da seta cupidesca, e já ninguém o conhecia. A vida dele era ela. Os pensamentos dele eram ela.
Consumou-se, começaram.
Mas, como tudo, como sempre, havia que manter acessa a chama, para que o calor durasse...para o mais que desse.
Tomou uma atitude: escrever-lhe uma carta de amor, de paixão, reveladora, inocente, totalmente inovadora, para alguém que me chegou a perguntar o que queria dizer bibliografia.
Não assisti à redacção do documento, mas ela teve lugar no domicílio do remetente.
Deu-se a tradição, por mão, da dita epístola.
Para surpresa minha, a destinatária adorou-a, deslumbrou-se e caiu de quatro, ainda mais do que já se encontrava. Digo "para surpresa minha" porque a li, e, para alguém como eu, ninguém poderia gostar daquilo. Os erros ortográficos eram grosseiros, as frases não tinham nexo nem a mensagem conseguia passar. Se ele queria dizer-lhe que a amava, melhor maneira teria de arranjar.
Qual quê...
Por toda uma noite, a domina epistolae, empunhou o pedaço de papel que lhe tinha sido endereçado e, sorridente, como nunca mais a terei visto, quase bailava.
Fui comentar aquilo com alguém bem mais velho que qualquer dos intervenientes e observadores próprios.
A conclusão foi marcante: uma carta com erros ortográficos vale mais que carta nenhuma.
Uns dias mas tarde acabou tudo.
Apesar de ter sido responsável por algumas cartas românticas, nunca fui descoberto.
Deve ser por não as ter assinado.
Seja como for, as destinatárias não lêem o blog, posso falar à vontade.
Também foi há anos...
É a ausência de alguém que me faz lembrar disto.
5 minutos com ela é melhor que nenhum.