quarta-feira, janeiro 17, 2018

Um tributo a: Carlos Costa, Júlio Costa, Óscar Santana, Benedito Seviero, Tomaz, Dean Landon e um bocado de Palma.

10 anos.

Não tinham mais de 10 anos quando se viram pela primeira vez. Aquelas almas.

Não lhes faltava mundo, mas faltava espaço. Para correrem, andarem de bicicleta, enfim, para serem crianças e brincarem.

Roberta, aos ditos 10 anos, vivia em Vila Nova de Gaia, numa ruela que descia e tratava de apresentar uma das mais recentes caves de Vinho do Porto. Joaquim, na mesma idade, estava em Coimbra, depois de ter nascido e vivido, ainda que por pouco tempo, em Aveiro. Qualquer coisa com um negócio que se frustrou, não se percebeu bem.

Roberta e Joaquim conhecem-se desde os 6 anos de idade. As respectivas professoras primárias trataram de criar um programa de correspondência com outras escolas. As ditas professoras, amigas desde sempre, lá arranjaram maneira de colocar as respectivas turmas de que eram responsáveis a corresponder-se. Então, semana sim, semana não, lá se organizava um lanche num café ao pé dos correios, onde, entre bolas de berlim e pasteis de nata, os miúdos punham a escrita em dia e endereçavam as missivas aos destinatários atribuídos aleatoriamente.

Foi nesses moldes que se iniciou a amizade de Roberta e Joaquim.

Na altura, não havia qualquer início ou sugestão de rede social. A carta, reconhecendo, à luz dos dias de hoje, o avanço que trouxe um facebook ou whatsapp, tem uma mística incontornável: o toque, a personalidade vertida na caligrafia...é todo um mundo.

Acaba a instrução primária, nem por isso deixaram as professoras cair aquele que tinha sido um projecto bem sucedido. Um ano após as despedidas, indo cada aluno para seu lado, foi possível assistir a uma reunião de todos, mas de todos mesmo: alunos da mesma turma e da turma com que se correspondiam. O ajuntamento teve lugar em Lisboa, consistindo num fim-de-semana cultural, com visitas a museus bibliotecas, faculdades, mas também centros comerciais e ao tão badalado Hard Rock Café.

Quando se viram ao vivo e pela primeira vez, Roberta e Joaquim aparentavam já se relacionar pessoalmente há anos. Não houve incómodos, vergonhas, hesitações. Passaram todo o fim-de-semana em permanente contacto e quando tiveram que regressar, sem qualquer tristeza, trocaram um "até já".

Entretanto, a vida foi acontecendo.

De uma troca de cartas semanal, passou-se para uma ida aos correios de 6 em 6 meses e, passados 2 anos, cessou a remessa de missivas.

Em meia dezena de anos, ambos não passaram de uma ténue recordação um do outro.

Com a maioridade, entraram ambos na Faculdade. Roberta, depois de falhar o curso de medicina, seguiu para anatomia patológica. Joaquim, como sempre quis, entrou no Técnico, para engenharia civil. Ficaram ambos em Lisboa.

Nunca o souberam. Concluíram os seus cursos com modesto sucesso e, não obstante terem sido ferozes frequentadores do Cais do Sodré e do Lux, ainda não teria sido naquele momento das suas vidas que se haviam encontrado.

Ambos de famílias ditas tradicionais, com a mestria e sincronização de um relógio, arranjaram companheiros e datas para casar em simultâneo.

E é a partir daqui que nunca mais se vão largar.

Sentado à janela do Restaurante "Derbi", na Rua das Portas de Santo Antão, Joaquim pede um prego e uma imperial e "já agora, o Correio da Manhã". A noiva tinha ido a um musical do La Féria com os pais e Joaquim não estava para ali virado. Sem nada melhor para fazer, foi ler e comer qualquer coisa antes de se aventurar na Rua do Ouro. No dito jornal, o costume: fome, peste e guerra. Decidiu avançar para as últimas páginas, onde era costume publicitar os óbitos e, às vezes, os casamentos. A primeira leitura transmitiu um choque: tinha morrido o Alfredo, antigo presidente da Junta de Freguesia. O Alfredo tinha exercido o cargo na altura em que se deu o encontro entre as turmas do Joaquim e da Roberta. De resto, a Junta tinha dado uma ajuda para pagar a gasolina e os bilhetes dos museus.

Estranho. Há anos que o Joaquim não se lembrava da Roberta. Não obstante o pesar que a morte do Alfredo causava, a lembrança da Roberta vinha apertar-lhe o coração.

Tentando fugir desse sentimento, prosseguiu a sua leitura. Foi pior.

Logo abaixo da foto do Alfredo, fazia-se um anúncio: Roberta Marques (era esse o apelido dela) e Sérgio Outubro iriam casar-se, dali a 5 meses, em Campo Maior.

Antes do choque, antes de qualquer outra emoção, Joaquim fez uma pergunta: "Campo Maior?! Por que raio em Campo Maior?"

Até àquele momento, Joaquim nunca tinha pensado em Roberta como "a tal", mas, agora, o sentimento de perda estava para lá de irreparável. Roberta, a Roberta que ele tinha conhecido, cabelo preto, olhos castanhos, tão banal mas tão única.

Isto não podia ficar assim. Não podia, simplesmente.

Com uma paciência que nunca teve, Joaquim esperou 5 meses. 5 longos meses. Mas, ao dia e hora indicados, apareceu à porta da Igreja.

Roberta optou por um casamento dito elegante: casou de noite. A contrastar com o seu sentido de elegância estava o noivo. Enquanto Roberta convidou familiares próximos e apenas amigos especiais, Sérgio convidou toda e qualquer espécie de mamífero com quem já tinha bebido um medronho. Enquanto Roberta quis optar por uma iluminação e decoração discreta, Sérgio impôs a sua vontade e contratou uma empresa de iluminação que fazia aquela igreja parecer o velho Estádio de Alvalade em dia de concerto e uma decoração digna de um qualquer ilustre membro de White Trash televisionado pelo TLC.

Voltando a Joaquim, antes do começo da cerimónia tratou de entrar na igreja e escolher um sitio recatado, não fosse o diabo tecê-las. Ao ver aquele aparato todo, não se manteve de pé. Mal tocam os primeiros acordes da Marcha Nupcial apenas a sua cabeça consegue rodar no sentido da noiva. Como manda a tradição, caminhou até ao altar de braço dado com o seu tio, padrinho designado.

Nem um mandingo cozinhado vivo sofreu o que Joaquim sofreu. A face de Roberta foi-se abrindo com o decurso da liturgia. Quando foi permitido que Sérgio beijasse a noiva, Joaquim quis sair, mas as pernas discordaram.

Finalmente, acabava a cerimónia. Arroz, fotografias, enfim, o "Aceito" da praxe.

Joaquim acercou-se de Roberta. Sem força para mais, apenas murmurou: "Felicidades".

A expressão de Roberta mudou. Não precisou de segundo algum para conhecer aquele vulto assustado. Mas estava surpreendida: "aquele, aqui?". Todavia, não conseguiu responder. Nem um mero "obrigado". Apenas lágrimas. Sérgio perguntou o que se passava. "Estou tão feliz", disse Roberta.

Veio novo hiato de tempo. Foi tremendo o que Joaquim fez a Roberta. Nem a mesma esperava algo assim: nunca esqueceu aquele momento. Consequências: um matrimónio infeliz.

Nem decorrido um ano desde as bodas, Sérgio voltou à sua vida de sempre. Metido em bares duvidosos, gastando todo o dinheiro em putas e vinho verde. Em casa tinha Roberta, mas no Bar tinha as que uma nota de 50 podia pagar. Os dias passaram todos a ser iguais, Sérgio saía de manhã cedo para o trabalho. Era soldador ali perto. Inacreditavelmente, era pago ao dia. Entrando cedo, saía tarde e nem passava por casa. Era directo para o "Violino", um "estabelecimento" de má fama, a alguns 10 kilometros de sua casa, que oferecia tudo o que Sérgio queria comprar: tosgas, gajas e música barata. A frequência era composta ou por senhoras à procura de uma emoção forte, grátis ou onerosa e cavalheiros dispostos a fornecer o frete. Invariavelmente, chegava bêbedo a casa e só aterrava na cama. Nunca foi violento para Roberta. Simplesmente, não queria saber dela. Podia Roberta gritar, partir o que quisesse, Sérgio não estava em modo ouvinte.

Naquela noite de sexta, verão quente, Sérgio estava no "Violino" com um copo de tinto à frente. A música estava ao rubro. Cordas e metais fundidos num som estridente. Tudo dançava, todos vibravam. Para Sérgio, a seguir àquele copo tinha que se seguir um bom quarto de hora na companhia certa, no andar de cima. Levou a mão ao bolso para se assegurar que trazia provisão. Desfeita a dúvida, começou a inspeccionar a casa, para ver o que lhe ia tocar.

Eis senão quando entra uma senhora distinta. Elegante. Bem vestida. Uma dama. Era Roberta.

Roberta tinha-se cansado da vida que levava e decidiu pôr-lhe um fim. Propositadamente, foi ao "Violino" com o melhor fato do roupeiro, mas os melhores sapatos que tinha e com aquele perfume francês desconhecido da maioria das moças das redondezas. Toda ela cheirava e parecia bem. Sérgio afastou o copo e olhou 3 vezes. Era mesmo Roberta.

No dia seguinte, o falatório instalou-se. "Roberta tinha deixado cair o manto de mulher honrada." Sérgio, estranhamente, ou não, gostou daquela faceta. Se outrora via Roberta como a Madre Superior, aquela apresentação, e logo no lugar onde foi, despertou interesses que se julgavam prescritos.

De todo o modo, aquele casamento acabou. A ida de Roberta ao "Violino" mais não foi de que uma carta de interpelação, avisando para o fim da relação. Sérgio não deu luta. Assinou o que tinha de assinar e seguiu cada um o seu caminho.

Roberta podia agora procurar Joaquim.

Joaquim, por sua vez, sem se casar, e praticamente depois do episódio do casamento, fazia vida com Maria João, uma funcionária da Câmara Municipal com que se cruzou em trabalho. Ambos liberais nos costumes, decidiram que se iam casar "se" (e só "se") viesse um bebé no caminho.

A vida que Joaquim levava era aquela que sempre tinha querido. Trabalho certo, por conta própria e com clientes que vieram a tornar-se amigos. Jantaradas com amigos, teatro, cinema, viagens. Já se tinha esquecido de Roberta. Maria João tinha sido elevada ao posto de "amor da sua vida".

Depois de sair de casa, Roberta foi viver para uma cave na sua terra Natal. Sem fazer disso a sua única razão de viver, Roberta queria mesmo encontrar Joaquim e perceber, afinal, o que foi ele fazer ao seu casamento.

Número de telemóvel não tinha. Morada também não. Iria ser graças a uma amiga comum que voltaria ao encalço do seu pen pal. Com efeito, ao tomar café com Júlia, Roberta contou-lhe a respeito da sua vontade de encontrar Joaquim. Júlia, amiga de Roberta desde a primária, não demorou a contar que Joaquim trabalhava perto da sua casa e que, caso ela quisesse, entre as 18 horas e 18 e 30 não teria como escapar-lhe.

Foi no dia seguinte. Esperar não era para ela.

O encontro deu-se.

Roberta, se calhar sem medir as palavras, declarou-se a Joaquim. Disse que ele foi sempre o "homem da sua vida". Que o soube sempre, mas nem sempre o percebeu.

Joaquim estava perdido.O que era aquilo agora? Porquê agora? Por que razão se agarrava ela a ela e pedia que "tentassem"? Porquê agora, quando ele já tem alguém? Porquê agora, quando a sua vida se refez a tanto custo?

Roberta segurava o rosto de Joaquim. Este, segurando os pulsos de Roberta, afastou-lhe as mãos da cara. Acto contínuo, deu-lhe um beijo na testa.

Roberta percebeu que a água não passa duas vezes debaixo da mesma ponte.

Adeus, Roberta.

Adeus, Joaquim.