terça-feira, dezembro 06, 2022

Há bocado

Típica manhã de Dezembro, no início de Dezembro. Ainda escrevo os meses com letra maiúscula.

No carro, aquela réstia de humidade que cobre as janelas. Estava a limpá-las.

"Perdoe-me a ousadia, mas vai para o Laranjeiro?"

Exibia-se um ser humano maior que eu, de voz grossa e vivida, vestido como podia e com um braço ao peito. Olhei-o.

"Por acaso, hoje não. Vou para Almada, centro sul"

Cogitou. 

"Deixe estar, obrigado"

Insisti

"Mas não quer que o deixe em Almada?"

"Centro sul? Sim, se calhar ainda consigo ir de metro, não sei é se terei dinheiro para o bilhete."

"Entre."

Apresentou-se. Era Engenheiro de comunicações

"Fui Colega do Guterres e do Mister da Selecção".

Explicou-me o Curriculum. 

"Trabalhei 16 anos na Inglaterra, era Engenheiro lá. Depois, tive uma doença rara, dois AVC e não me consegui levantar. Hoje, sou sem-abrigo por causa da filha da puta da minha irmã."

Ainda começou a introduzir o tópico "filha da puta da minha irmã", mas estava mais engajado no caminho que tinha tido antes.

"Fui a muitos médicos e só um me diagnosticou. Cá, em Portugal, já estive internado sem falar e sem ver".

O cenário era negro.

"Agora, dei uma queda, filha da puta".

Começámos a chegar ao destino. 

"Agora, vou para Cuba, casar-me com uma Cubana. É tal qual a Naomi Campbell. Se olhar para mim, veja lá se não sou tal qual o Morgan Freeman? Em Inglaterra, tenho histórias destas fabulosas."

Parámos, perguntou-me o nome, disse. 

"Não me vou esquecer de si".

Não me importava nada de ter ido beber um copo com aquele homem.